domingo, 29 de novembro de 2009

primeiro domingo do Advento

Foi hoje o primeiro domingo do Advento, o início do novo ano litúrgico. Acendi a primeira vela, prometendo a mim própria continuar até acender as quatro, simbolizando neste gesto o desejo de viver em profundidade o mistério da Incarnação, arredando para bem longe o que se tornou a maior festa do consumismo. Será porventura a primeira vez que o conseguirei, arrastada que tenho sido todos estes anos a sustentar uma tradição cada vez mais esvaziada do seu verdadeiro sentido, mesmo neste pequeno núcleo que através de mim se constituiu e em que, todavia, tão pouca sintonia encontro.
Mas não é circunstancial o que em mim apela a me voltar para Aquele em quem ponho toda a minha confiança, nesta inabalável certeza de que estará sempre comigo, mesmo quando, por minha culpa, não sinto sobre mim a pressão doce e suave da Sua mão, que me ampara e sustém.
Que Ele me ensine a ver/ler, não o que as coisas ou as palavras são em si, faltando-lhes precisamente aquilo que motiva todo o criador à criação e que é o que tu e eu lhes acrescentamos no vê-las/lê-las, mas com esse quantum de mistério que daí mesmo lhes advém e as ilumina por dentro e em redor. Que seja pelos Seus olhos que os nossos as vejam/leiam e o mistério será luz que não cega, nada ocultando atrás de si e nada a podendo ocultar interpondo-se. Que são as coisas ou as palavras em si, para além de nos serem oferecidas como maravilhoso suporte deste mistério? E por "coisas" e "palavras" subentendemos os acontecimentos que envolvem e em que são envolvidas, na vida como na escrita.

preparar o voo

Faz hoje quatro anos que o meu pai transpôs o "horizonte do acontecimento"... e terá encontrado esses "novos céus e nova terra", onde uma outra física o fascinará como o fascinava a que tão bem conhecia... Assim entendi hoje a leitura do Evangelho do primeiro domingo de Advento.


Tento fazer uma leitura simbólica da revolução que as obras de restauro no interior da casa sempre implicam e aceitar em paz estas semanas de desassossego no meio do caos instalado, em que me tem sido impossível procurar na escrita o que por essa via tantas vezes aconteceu: escutá-Lo. Entenderei este Seu e meu silêncio inerente ao que a terra revolvida anuncia. "Wolle die Wandlung"... Cito Rilke, neste anseio de alcançar um novo patamar da existência, próximo já do limiar a transpor no que desejaria que fosse a "ansiada manhã" de um preparado voo. "Mache dich zum Flug bereit in den ersehnten Morgen".Transcrevo o poema de H. Hesse:


Das Blau der Ferne klärt sich schon
Vergeistigt und gelichtet
Zu jenem süßen Zauberton,
Den nur der September dichtet.

Der reife Sommer über Nacht
Will sich zum Feste färben,
Da alles in Vollendung lacht
Und willig ist zu sterben.

Entreiß dich, Seele, nun der Zeit,
Entreiß dich deinen Sorgen,
Und mache dich zum Flug bereit
In den ersehnten Morgen.

H.Hesse, Höhe des Sommers

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Fazei-me voltar

Voltar, não para trás, mas para o rumo de que nada, então, me parecia poder alguma vez desviar-me. Esse desvio anunciou-se-me no dia em que, orgulhosamente, proferi: "onde está a virtude se não há tentação?" O caminho parecia-me tão luminoso que o que quer que se interpusesse seria sempre visto como sombra logo aniquilada pela tão imensa luz . Luminoso se me afigurava o momento, quando chegasse, de descartar esta casca envolvente, demasiado densa para com ela poder prosseguir o caminho num "outro nível de vibração" (cito Rilke na carta ao tradutor polaco, sabendo que o termo vem da ciência/filosofia teosófica, desejando libertá-lo dessa carga nesta utilização).
Queixava-se uma amiga de a cena se andar a repetir com mais frequência agora que envelhecia, sempre invariavelmente a mesma. Diria que não se repete, que é sempre diferente, ainda que o ritual possa revestir a mesma forma. Ao regressar de uma dessas ocasiões de encontro, escuto a pergunta que me sobressaltou e ao mesmo tempo inundou daquela alegria que nos enche a alma mesmo que nos pese a tristeza: "a festa foi tão bonita como a da tia?" Para a pequena, que ainda não tinha cinco anos, fora a memória que lhe ficara dessa "cena" a que assistira pela primeira vez naquele Verão.
Uma festa, quando tudo acontece segundo a "ordem natural"...

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

"uma carta escrita por Deus"

Coloquei uma questão que se me depara no plano da vida como no da escrita, pois que a vida (a vida individual de cada um, singular e único) pode, sempre e em qualquer momento, ser(re)lida como um texto. Prouvera que se fosse tornando, cada vez mais, uma "carta escrita por Deus". Trazendo para este contexto esta formulação de S. Paulo, confio que o fogo do espírito revivifique a metáfora morta que a letra do texto possa porventura prender a si.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

"aprendo a ver" ("ich lerne sehen")

Apropriando-me da formulação de Rilke (na boca de Malte), digo o propósito de assumir uma outra perspectiva, que desejaria no sentido do "puro olhar "de que fala Traherne, face ao mundo, seja ao único mundo a que tenho acesso directo por via desta unidade trina de corpo, alma e espírito que sou eu (estou a evitar designá-lo por mundo de que sou sujeito, conceitos advenientes de uma perspectiva que de algum modo interfere com a que pretendo assumir), seja face ao mundo do outro, um mundo outro a que não tenho acesso senão através da linguagem (contemplando esta tudo o que o seu próprio uso envolve). Interessa-me, naturalmente, ter em conta apenas o modo escrito da linguagem verbal, bem como o pressuposto de que o mundo a que abre me é dado a ver tanto quanto o vejo, sendo o que vejo a resultante e a causa de uma dinâmica interpessoal em curso.
Essa outra perspectiva que tenho em mente é a ergativa, que faço incidir sobre o texto no processo de se tornar discurso (faço aqui já a opção pelo modelo ergativo, preterindo o de transividade: "no processo em que o torno discurso") . Sendo o texto em si tão inacessível como a coisa em si, só ao discurso me posso ater, consciente, à partida, de que lhe é inerente, com a reiterabilidade, a irrepetibilidade (sendo que o grau de envolvimento da cada uma das dimensões semânticas nunca é exactamente o mesmo).
Trata-se de focar o olhar num núcleo semântico que, no que toca a vertente de representação, é constituído pelo acontecimento indissociável daquilo mesmo sem o qual esse acontecimento não teria lugar. (Daqui decorre dissolver-se a distinção gramatical entre verbo e nome/substantivo). Em torno deste núcleo tudo o mais se torna circunstancial.
Pergunto: que implicações tem tudo isto na vertente de enunciação (envolvida por e envolvendo a dinâmica interpessoal em curso, a que continuo a reconhecer um papel determinante)?