quarta-feira, 22 de abril de 2009

Bach: Jesu, meine Freude, BWV 227 (Mvt. I, II, III)

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Falei em discernimento. O termo "discernir" tem a grande vantagem de não ter etimologicamente nada a ver com captar ou prender (como "perceber", "conceber", "apreender", "compreender"); significa joeirar e, deste modo, distinguir, separar. A joeira é neste caso o "olhar puro" (como o defini num post anterior). Escolhe o melhor e sopra o resto. A escolha é tanto intelectual como afectiva (no olhar puro estas componentes são inseparáveis): o melhor, tal como o mais belo, é o que mais agrada (à razão e ao coração simultaneamente) e manifesta-se pelo transbordar da alegria (que é inerente ao olhar puro). Os grandes motets de Bach, muito em especial Jesu meine Freude, comprazem-me sobremaneira desde a adolescência. E as palavras são tão essenciais quanto a música:

Jesu meine Freude, meines Herzens Weide, Jesu meine Zier.

Evoco o que diz G. Agamben em O tempo que resta sobre o facto de a fé ser expressa por um grupo nominal (Iesous Christou) e não por uma oração. Traduzo da versão francesa o passo de O tempo que resta (sexta jornada) a que me refiro:

"Um mundo que não é feito de substância e qualidades: não um mundo em que a erva é verde, o sol quente, a neve branca. Não, não é um mundo de predicados, de existências e de essências, mas um mundo de acontecimentos indivisíveis no qual não julgo e não creio que a neve é branca e que o sol é quente, mas pelo contrário no qual sou transportado e deslocado para o ser-a-neve-branca e para o ser-o-sol-quente."

Extrapolando para os grupos nominais do início do motet (inseparáveis da música e da voz ) direi que não se trata de julgar ou crer ou mesmo sentir que Jesus é a minha alegria, o meu deleite, a minha glória, trata-se de ser transportada, deslocada, para o ser-Jesus-a minha alegria, o ser-Jesus- o deleite (pastagem) do meu coração, o ser-Jesus-a minha glória.
É neste mundo que dizer Jesus é o mesmo que dizer a minha alegria, deleite e glória.
Agamben continua, nestes termos, a elucidar o que é este "mundo da fé":

"Enfim, um mundo no qual não creio que Jesus, esse homem, é o messias , filho único de Deus, gerado e não criado, consubstancial ao Pai; mas creio somente em Jesus messias, sou arrastado e transportado para ele, de tal maneira que «não sou eu que vivo, mas é o messias que vive em mim".

Neste livro (absolutamente magnífico) Agamben faz, em seis jornadas, um comentário à Epístola de S. Paulo aos Romanos, tomando cada uma das dez palavras do seu incipit, que, conforme sublinha, "recapitulam todo o texto". E o termo "recapitular" é, conforme deixa claro, um termo messiânico paulino a que se irá ater. É assim que, logo na primeira jornada, explica que, no vocabulário de S. Paulo, christou não é um nome próprio, mas a tradução do termo hebraico masiah (o ungido, o messias): Christou Iesous é "o messias Jesus". Compreende-se, diz-nos, que não faça sentido designar por "discípulo de Cristo" (entendimento comum de "cristão") "o que vive no messias", o que vive "uma vida messiânica" no "tempo messiânico". O que isto significa é a questão fundamental de S. Paulo, que Agamben coloca e clarifica admiravelmente neste livro.

sábado, 18 de abril de 2009

Talvez nunca tenha sido verdadeiramente capaz de explicitar algo que me parece auto-evidente, advindo a dificuldade (inultrapassável porventura) de o dar a ver a quem não o quer ver. Em que é que o mistério é afectado em lhe chamarem Deus e uns o quererem pessoal e outros o quererem impessoal, ou até mesmo em uns o quererem e outros o não quererem? Cada vez mais me parece uma questão, esta sim, pessoal e de gosto ou propensão, não de capacidade intelectual. Prefiro falar em discernimento, que passa por reconhecer, de uma vez por todas, que o mistério é mistério por sua natureza e não porque contenha algo oculto a desocultar (Rilke reitera-o no seu inexcedível modo de dizer). São apenas vias diferentes de o pensar ou não pensar (nada no-lo proíbe, antes pelo contrário, dada a nossa essência pensante, envolvida tanto em pensar como em não pensar).

quarta-feira, 15 de abril de 2009

centralidade


Na continuação da leitura da Nuvem, tomo consciência de que um tempo houve em que Lhe dava a exclusividade total, O colocava no centro do meu viver.
A este respeito leio, no capítulo 2: "He is a jealous lover and suffereth no fellowship"(Ele é um amante ciumento e não sofre rival).
Confesso que não percebia como é que estas coisas me estavam a acontecer e a outros de que me chegava notícia. Teresa d'Ávila recomendava às casadas que tratassem de comprazer os seus esposos, que estas coisas não eram para elas; agora aconteciam a qualquer um, independentemente do estado civil e da prática (ou não prática) religiosa. Podia citar nomes, mas prefiro não o fazer tendo em conta que uma coisa é a experiência da pura ocorrência sem conteúdo e outra é a conta dada dessa experiência, sempre uma efabulação (fable mystique).
Não ajuízo de nenhuma dessas efabulações (em que conto a minha e pergunto-me em que é que isto espanta, se é a única forma de lidar com o que em absoluto nos transcende) . Apenas tomo posição em termos do bom ou do mau gosto, consoante me agrade ou não. Há que ir além da narrativa, além da "apreensão" do que é narrado, há que "compreender". A compreensão implica um olhar puro. Chamo olhar puro ao olhar não toldado por preconceitos de qualquer espécie, colocado ao serviço do descernimento.
Continuarei.

segunda-feira, 13 de abril de 2009


Continuo a nova leitura de Cloud of Unknowing, na versão de Underhill, pressupondo que seja próxima da original. Tenho esta convicção de que as palavras originais são por isso mesmo mais propícias ao acontecimento de que nasce a tríade eu-tu-Tu. Foi, na verdade, com a primeira leitura deste livro que tive pela primeira vez a experiência desta tríade, suficientemente intensa para se me tornar perceptível.
Leio-o agora de uma outra forma, reconhecendo que o primeiro "encontro" aconteceu no que, em retrospectiva e pela multiplicidade de experiências desta ordem que então ocorreram, sem porquê, me parece poder encarar como esse grau "especial", de repente instaurado na minha forma "comum" de viver.
Não há retorno. Nem o desejo é nesse sentido, o que me causa estranheza tendo em conta que não conheci na vida momentos de maior felicidade. À transitoriedade do grau "especial" aplicarei as palavras de S. Paulo relativas ao processo de crescimento, no decorrer do qual cedo o leite materno é substituído por alimento sólido. O grau especial é pura graça (a tomada de consciência disto mesmo instaura a maior humildade em face de uma dádiva sem correspondência com qualquer merecimento).
Do grau "singular" nada sei ... apenas posso falar da "longa noite" que se sucedeu à etapa "especial", noite que queria encarar como preparação necessária para o que virá e que inteiramente desconheço. Não entendi de início que iria entrar pela noite dentro e caminhar às escuras. Até aí nunca estivera só. Não me vale de nada tentar convencer-me de que era apenas uma entidade espiritual que partiu para a luz. "Eu sou a luz", dir-me-ia se lho tivesse perguntado então. Parecia-me evidente que o lago estando cheio tinha de transbordar.
Não sei se é inerente a este caminhar que o "outro privilegiado" (aproprio-me de uma designação que me parece feliz, ainda que seja outra a referência envolvida no seu uso original) venha ao meu encontro para se afastar depois, preterindo-me. Atribui-lo a desajustes referenciais (dentro desta denominação meto muita coisa relativa ao "suporte material" do que poderia chamar "vida" se a opusesse a "escrita") faz-me tomar consciência de um despojamento que por me ser penoso não deixa de ser essencial a um avanço que acredito ser "de claridade em claridade": "sair de uma luz para noutra entrar", na reverbalização que Silesius faz das palavras de S. Paulo.

domingo, 12 de abril de 2009

Domingo de Ressurreição


Quero viver este dia como se já estivesse aberta a janela que confio se me abrirá e como me envolvesse já a luz gloriosa do Sol nascente (será sempre o mais belo símbolo de ressurreição).
Na sexta-feira santa, ainda cercada pela noite escura, experimentei o impulso de voltar a ler Cloud of Unknowing (há uma tradução portuguesa recente). Encontrei conforto no Prólogo (deixou, na altura, profundos traços na minha memória, de tal modo singulariza o autor anónimo deste livro, tanto quanto singulariza cada um daqueles a quem é destinado).
Logo no capítulo I deparei com o que me queria dizer quem me levou a tomá-lo para o reler, como se quisesse que, mais uma vez, acontecesse "em mim fora de mim" a tríade em que senti tão vivo e tão próximo aquele que o escreveu, tendo-o escrito para mim (como diria T.T.). Sim, a misteriosa tríade em que acontece aquilo mesmo que a faz acontecer. Sei que sobrevirá um dia de novo, numa forma inteiramente nova que me sobressaltará por ultrapassar (como é marca sua) quanto poderia imaginar desejar.
A versão para inglês moderno de Clifton Wolters levou-me ao confronto com a de Evelyn Underhill (online). Onde Wolters escreveu "solitário", Evelyn coloca "singular". Este termo tem, naturalmente, uma acrescida intensidade para mim, de tal modo que na ligação singular-solitário reconheci quanto era crucial o que me estava a ser revelado. Sim, para trás há muito ficaram as etapas comum e especial. Será a singular que terei por diante, a que é inerente a solitude que lhe reconhece o autor desconhecido e a que Wolters dá todo o relevo.
Traduzo (e transcrevo abaixo, com cortes meus) da versão de E.Underhill:

Alma amiga em Deus, deverás bem compreender que encontre, na minha rude visão, quatro graus e formas de viver do cristão e que sejam estes: comum, especial, singular e perfeito. Os três primeiros podem iniciar-se e terminar nesta vida, enquanto o quarto, por graça divina, pode iniciar-se aqui e continuará sempre sem fim na bem-aventurança do Céu. E na ordem por que os vês colocados aqui um após o outro – primeiro o comum, a seguir o especial, depois o singular e por fim o perfeito, assim penso que na mesma ordem e na mesma via o Senhor, por Sua grande misericórdia, te chamou e te levou até Ele pelo desejo do teu coração. Pois quando primeiro vivias no grau comum de vida cristã na companhia dos teus amigos terrenos, parece-me que o eterno amor de Deus (...) não suportava que estivesses tão longe d' Ele no grau e na forma de viveres. E por isso inflamou o teu desejo por plena graça Sua e prendeu nele a trela do anseio, pela qual te levou a um estado e forma de viver mais especial, para seres serva entre as suas servas especiais, onde aprendesses a viver mais especial e espiritualmente ao Seu serviço do que o fazias ou farias antes no grau comum de vida. E que mais?
Parece porém que Ele não te queria deixar assim tão ligeiramente, por amor do Seu coração, amor que para sempre tem por ti desde que alguma coisa foste: que fez Ele? Não vês quão nublada e gratuitamente te empurrou no mais íntimo de ti para o terceiro grau e modo de viver, chamado singular? Nesta forma e modo solitário de viver aprenderás a levantar os pés do teu amor; e a dar um passo em direcção ao estado e grau de vida que é o perfeito e o último estado de todos.

GHOSTLY friend in God, thou shalt well understand that I find, in my boisterous beholding, four degrees and forms of Christian men’s living: and they be these, Common, Special, Singular, and Perfect. Three of these may be begun and ended in this life; and the fourth may by grace be begun here, but it shall ever last without end in the bliss of Heaven. And right as thou seest how they be set here in order each one after other; first Common, then Special, after Singular, and last Perfect, right so me thinketh that in the same order and in the same course our Lord hath of His great mercy called thee and led thee unto Him by the desire of thine heart.
For first thou wottest well that when thou wert living in the common degree of Christian men’s living in company of thy worldly friends, it seemeth to me that the everlasting love of His Godhead (...) might not suffer thee to be so far from Him in form and degree of living. And therefore He kindled thy desire full graciously, and fastened by it a leash of longing, and led thee by it into a more special state and form of living, to be a servant among the special servants of His; where thou mightest learn to live more specially and more ghostly in His service than thou didst, or mightest do, in the common degree of living before. And what more?
Yet it seemeth that He would not leave thee thus lightly, for love of His heart, the which He hath evermore had unto thee since thou wert aught: but what did He? Seest thou nought how Mistily and how graciously He hath privily pulled thee to the third degree and manner of living, the which is called Singular? In the which solitary form and manner of living, thou mayest learn to lift up the foot of thy love; and step towards that state and degree of living that is perfect, and the last state of all.

N.B. A imagem foi colhida na net.

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segunda-feira, 6 de abril de 2009

A (sobre)vinda do Espírito: puro "acontecer"



A noção derridiana do “por vir” na dinâmica em que as coisas se tornam outras, nunca se repetindo na multiplicidade das suas iterações, veio transmutar inteiramente o meu modo de pensar ao mesmo tempo que me propiciava uma maior aproximação do mistério de que, não sabendo o que "no mundo possa ser" (T.T.), só me é possível conhecer a força de atracção.
Trouxeste-me depois a tua noção de "acontecimento" como puro acontecer, tornado facto na tentativa da sua apreensão e, como tal, entretecido na história que vamos contando e recontando, sempre outra, a nós mesmos ou aos outros. Não menos importante foi a tua noção de "compreensão", distinta da mera apreensão dos factos.

Vieste assim ao encontro da minha própria reflexão contemplativa (se lhe posso chamar assim) relativamente à dinâmica trinitária e à (sobre)vinda do Espírito Santo, a "renovar em Si todas as coisas”. A noção derridiana do “por vir” e a tua visão do "acontecer do acontecimento" vieram corroborar a ideia da liberdade que Lhe é associada. Nada, nenhuma palavra ou enunciado O pode prender. Insustentável, acontece na plenitude do momento: um sobressalto, um estremecimento, uma inundante alegria ("E Jesus estremeceu de alegria sob a acção do Espírito Santo...", Luc10:21). Tais serão os efeitos sensíveis imediatos do acontecimento dos acontecimentos: a descida ou (sobre)vinda do Espírito.

A inundante alegria da efusão doEspírito é o júbilo da mais infinita e singular das singularidades.

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sábado, 4 de abril de 2009

"É tudo verdade"

Tenho recorrido à estratégia de, não podendo desligar o pensamento, interromper cada pensamento (oportuno ou inoportuno) visualizando-o como um galho ou tronco que a corrente arrasta e deixando que a corrente o leve...Outro e outro virão... Insistindo, virão em catadupa. Insistindo sempre começarão a espaçar-se. Um virá ainda. E ainda outro. O espaçamento será cada vez maior.

Um tempo houve em que, perseverando, acabava por só ver a água, apenas a água correndo... Proferia então a palavra sagrada, para mim a mais doce, nas suas sibilantes Não gosto da analogia com a flecha trespassando a "nuvem do não saber". Prefiro pensar num pássaro tornado o próprio voo. O tempo desta experiência, que me parecia de escassos segundos, verificava depois equivaler aos dez a quinze minutos que haviam decorrido cá fora, no mundo – "the basic world", como lhe chamou T.T.

Será que este modo de oração propiciou o acontecer do "acontecimento" que havia de mudar radicalmente a minha perspectiva da vida (e, com ela, da própria vida)? Pode haver experiência pura, sem âmbito ou objecto que a delimite? Se lhe apontar como objecto o nada ou coisa nenhuma, será ainda um objecto que lhe aponto, um âmbito em que a circunscrevo.G. Agamben fala da fé como crença sem conteúdo. "Professar a palavra da fé ", escreve, "não quer dizer formular proposições verdadeiras sobre Deus e sobre o mundo".

Nada de nada aconteceu. Quando dei por mim estava a dizer em voz alta: "então é tudo verdade!" Se me perguntasse o que era "tudo" diria, na altura, ser aquilo de que falam todos os que deram por si transformados sem saber o que os transformou. Diria, como eles, o que os "tocou", só podendo, como eles, dar conta da subsequente tomada de consciência da não consciência do "acontecimento", que não deixa qualquer rasto na memória que não seja o da sua inquestionável ocorrência enquanto puro acontecer, sem sujeito e sem objecto. "Wonder", diria T.T. do sentir por que manifesta essa tomada de consciência, "Infinite Wonder".

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